quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Maior Amor

O sol murupi descasca a noite e encontra-o de bruços amorenando-lhe a tez e enxugando-lhe as costas serenada de um pesadelo que ainda não acabara. A luz do poste em frente ao teatro da rua da Instalação mantém-se fiel ainda por alguns instantes antes de se despedir do ócio do infeliz e deixá-lo por conta da sua própria sorte.
Pés lentos em saltos quase nenhum mais com o amanhecer da madrugada, vultos de passos firmes e botas apressadas não hesitam em esnobar-lhe. Norberto está capotado ali sob olhares sorrateiros entregue ao flagelo duro da sarjeta. O celular no bolso dianteiro esquerdo toca uma, duas vezes e desliga. Norberto acorda deitado e levanta-se do colchão asfáltico nutrindo por sua vez a esperança de recauchutar a noite anterior enquanto sacode o lençol de poeira em meio a uma dor de cabeça que latejava ainda mais com as badaladas do sino da igreja da Matriz. No display do telefone móvel acusava quinze chamadas não atendidas e uma mensagem não lida. Uma sensação prenhe de curiosidade leva-o a conferir de quem eram as insistentes ligações. A ligeira suspeita bate com o número e a mensagem, Mamãe. Norberto já imaginando o teor da mensagem, prefere não lê-la. Norminha no auge de seus trinta e três anos, como todas as outras mães, só sossegava quando o filho matizava o calabouço de suas preocupações.
Norberto caminha por um túnel de flashes tal qual um filme rico em flashback. Porta bang-bang, penumbra, assovios, muitos assovios. A fome intima-o a parar na esquina dos sucos para embuçar o estômago com pastel de queijo e suco de acerola e enfim dar cabo do que acontecera durante a última reunião das estrelas. Os fios do pensamento puídos pelas muitas doses de felicidade etílica dificultavam montar o quebra-cabeça da porta bang-bang, penumbra, assovios, muitos assovios.
- Olha, não temos mais pastel. Pode ser outra coisa?
- Sim. Então traz um sanduíche. Responde Norberto com olhos famélicos.
Aquele jovem cujos ossos pareciam querer furar a pele estava angustiado entre o passado e o futuro sentindo na pele o dissabor do sanduíche da vida. A traição de sua memória o inchava de perguntas sem respostas que num súbito olhar pareciam vir de carona nas pupilas do atendente da lanchonete, um senhor encarquilhado, mas que ainda gozará o tétrico prazer de mais alguns anos por esse plano terreno. Para alimentar uma família, jornada dupla ainda não era o suficiente ao arauto da recôndita verdade perdida nos porões da madrugada.
- De onde nos conhecemos? Pergunta sofregamente Norberto.
- De onde comprar prazer nunca se tornará obsoleto.
Imediatamente Norberto mergulha a mão no bolso dianteiro esquerdo, apanha o celular para ler a mensagem não lida.
“Meu filho, me perdoa por polir o seu futuro com meu presente imundo.”

domingo, 23 de janeiro de 2011

O Piano


Novembro de 2000 fui convidado pela amiga Suymara pra fazer parte do quadro de funcionários de uma escola de idiomas, franquia recém-chegada em Manaus e na época administrado por Durval Braga – primo do ex-governador da cidade - e Juarez cujo sobrenome não me recordo agora. Então Janeiro de 2001 tive o prazer de conhecer o Durval Braga, cara simpático e jocoso, piadista e pró-ativo, asséptico, habilidoso com as palavras, enfim, um homem que transborda idéias. Pera aí, não pensem que essa história de amor é entre mim e ele, nada contra, mas não é isso não.
Bem, no decorrer desse primeiro ano de trabalho rolou uma sinergia surpreendente entre os professores, coordenação e direção daquela escola, até porque a equipe era bastante coesa, palavra essa que no nosso dia-a-dia tinha se tornado, eu diria, lugar-comum (a cada dez palavras pronunciadas por Juarez, sete delas era a palavra coeso), mas o Durval com o seu rico vocabulário a chamaria de metáfora desbotada.
O tempo foi passando e se encarregando de cada vez mais aproximar especialmente quatro pessoas: Eu, Suymara, Harisson e o proprietário da escola Durval, é claro, não necessariamente nessa ordem. Começamos então a sair juntos nos fins de semana, uma pizza aqui, um cineminha ali, um charutinho acolá, uma cervejinha de vez em quando, e na hora de voltar pra casa, adivinhem quem levava quem? – pois é, eu me encarregava de deixar o Harrison, e o Durval - muito altruísta – fazia questão de levar a Suymara para casa... Eu acho.
Uma bela noite fomos parar no Clave de Sol, lugar fino e requintado, localizado na rua Belo Horizonte, nome de rua bem sugestivo por sinal, e o Durval maquiavelicamente já estava enxergando – parafraseando a música - além do horizonte.
Estava ali esboçado o quadro de uma noite auspiciosa para Durval e Suymara, ao botar os pés naquele lugar, nos deparamos com um ambiente propício para o início de um grande romance, havia apenas dois ou três casais, luz ambiente, uma bateria e um piano. Durval nega de pés juntos, mas já estava tudo premeditado.
Não demorou muito e ele foi logo mostrando seus dotes musicais, enquanto tocava bateria, a admiração estava albergada nos olhos rutilantes da Suymara e pra minha surpresa nos olhos do Harrison também (ah viado!). Não satisfeito ele decidiu tocar piano, ah, aí é pra acabar, a carne é fraca, foi necessário que eu e o Harrison segurássemos o queixo da Suymara.
Brincadeiras à parte, ficou decretado naquela noite, ao som de skyline pigeons fly, que Durval e Suymara deixariam de fazer voos solos para então tornarem-se piloto e co-piloto da mesma aeronave.

Dez anos depois...

Suymara e Durval casaram-se, montaram uma empresa de tradução e consultoria lingüística e nas horas livres dedicam-se a escolha do enxoval do primeiro filho do casal.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Rapadura é doce, mas né mole não

Vou começar este texto sendo curto e grosso. Mãe, a senhora é uma heroína. Não falo isso da boca pra fora, os números estão aí para provar.
Veio muito jovem do interior para ganhar a vida na cidade grande, casou-se e teve cinco filhos, mas o coração – que quase lhe traiu em 2004 – ainda tinha lugar pra mais um, ou melhor, mais uma filha.
O poeta escreveu uma vez que tinha uma pedra no meio do caminho, no seu caminho mãe, havia algumas pedras, muitos espinhos e o número seis – vou já explicar o porquê do número seis.
Não foi fácil chegar aqui, a senhora passou muitas dificuldades na sua vida, mas em momento algum fraquejou. Anos oitenta. O país em crise, papai desempregado e a senhora – junto com o papai, é claro – com seis filhos para alimentar.
Deve ter sido muito duro pra senhora ter que olhar pra seis crianças e não ter de onde tirar dinheiro para alimentá-los. Quando conseguia uns poucos trocados pra comprar pão, fazia a multiplicação deles. Lembro que a senhora cortava o pão em fatias bem finas para que pudesse repartir para os seis moleques. Ficava sem comer, mas seus filhos não.
Também lembro quando a senhora acordava de madrugada, fazia o fogo, torcia o pescoço das galinhas e as depenavas uma a uma. E quando os primeiros raios de sol surgiam no horizonte quase todas as galinhas já estavam vendidas. Matava pra não morrer, mas se morrer por nós preciso fosse, ah... Não tenho dúvidas de que a senhora faria isso. Nossa... Com a dona Nonata não tinha tempo ruim. O seu Joaquim sabia que podia contar com ela pro que desse e viesse.
- Nonata, vai acordar os meninos pra nos ajudar, mandava nosso pai.
- Ah, Joaquim, deixa os meninos dormirem mais um pouco, coitadinho dos bichinhos, respondia a senhora.
Ainda lembram do número seis que mencionei no início do texto? Pois é, mamãe tem uma relação visceral com o dito cujo. Vejamos: seis sobrinhos seus moraram em sua casa, todos do interior da cidade com sonhos de vencer na cidade grande e a senhora sempre de braços abertos para recepcioná-los. Teve cinco filhos e adotou uma filha como já mencionei no início do texto, seis perniciosos insistentes derrames e como se não bastasse em 2004 foi preciso corajosamente abrir o peito e construir seis pontes, sendo cinco de safena e uma mamária. Meu Deus! A senhora é duro na queda, hein.
Essa cirurgia no coração me deu a exata dimensão do que somos, somos muito semelhantes a uma vela acesa, - já dizia meu pai - basta um simples sopro e pronto, já era. No dia em que eu e me pai estávamos diante do médico que faria a tal da cirurgia, e ele nos explicando da gravidade do problema, ouvi as mais duras palavras que um filho pode escutar de alguém. Quando alguém nos chama de filho da puta, a gente até releva, mas ouvir um: “Ou ela opera, ou ela tem só mais seis meses de vida.” é duro pra caralho. Olha aí o número seis de novo.
Naquele dia caiu a ficha. A vida da mamãe estava por um fio, então pensei cá com os meus botões. Cara, minha mãe pode morrer. Só que a impressão que tinha é que isso nunca aconteceria.
E agora pra falar pra ela sobre a operação? Quem dá a notícia? Bem, vamos passar a bola pro doutor Sérgio por que afinal de contas ele é preparado pra isso e está acostumado a lidar com esse tipo de situação.
De novo eu e me pai, só que agora acompanhado da mamãe, estávamos diante do médico, é, aquele preparado e acostumado com essas situações. Quando o doutor Sérgio abriu os exames ele balbuciou a seguinte frase: Eu já sabia. Então, levantou a cabeça, olhou nos olhos da mamãe e disse com todo o tato que lhe é peculiar:
Dona Raimunda, vamos precisar abrir o seu peito. Porra, pra falar desse jeito, eu mesmo falaria.
Mamãe desabou, chorava copiosamente. Acho que naquele dia ela sentiu a presença da morte, mas não esqueçamos, mamãe é forte. E ela foi pra cirurgia e tirou de letra, mais uma vez colocou a morte pra correr, corria que batia os pés na bunda, pois a morte é cínica, a morte é vagabunda.
E enquanto ela não se mete a besta de aparecer por aqui, vamos celebrar mais um ano de vida, vamos eternizar cada momento em que estivermos juntos ao seu lado, MAMÃE.