terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Mundo de Vidraças

Na noite em que pingos de espírito natalino encharcam de altruísmo os corações mais fleumáticos, Joaquim com seus cabelos pretos e bigode alvo racha a pele na sequidão de seu deserto intrínseco. Criado pela madrinha cujo senso de família ficou arraigado em tenra idade, ele era o próprio compêndio de uma aridez emocional. Teve a chance de pontilhar as letras castrada pela dura cartilha de uma criança que tinha o pedido de benção guardado no bolso do abandono desde os primeiros cueiros. Adultecera cedo e a perene ojeriza pelas relações familiares era o cume de um legado degenerativo. Experiente aos dezenove anos ganhava pouco dinheiro com muito trabalho para a madrinha – pois, ele não via um único centavo do salário - singrando as águas pálidas do Solimões e as negras do Negro como ajudante de bordo do motor de linha Andrade. Carregar fardos de feijão, farinha, engradados de cerveja era bem mais leve que o fardo do desamparo. A ausência da figura paterna pesava como uma cruz em cada braço. Seu Luís, proprietário do Andrade, tentava debalde assumir o papel de educador com receio de vê-lo às cegas em caminhos lôbregos. Num recreio carnavalesco lá pelos rincões do Careiro da Várzea Joaquim encontra o fim dos dias insípidos no olhar rutilante de Nonatinha. Foi amor à primeira vista. Aquela carioca de cabelos na altura dos ombros e olhos arredondados lhe caiu como uma tábua de salvação. E incentivado por ela e corroborado pelos conselhos de seu Luís largou a vida de marítimo para trabalhar por conta própria e logo a prosperidade bateu-lhe a porta e o matrimônio pousou-lhe sobre os ombros oito meses depois de muitos encontros às escondidas. A união foi o visto para a liberdade. O casulo matrimonial de muitos é a carta de alforria de outros. Já no primeiro Natal, o primeiro em família com direito a ceia e estouro de champagne, deixou a esposa em casa com a desculpa de ir ao açougue apanhar sua capanga com a renda do dia e viu o romper da aurora no puteiro Maria das Patas. O sereno boêmio da Manaus dos anos setenta lhe caíra como um véu. O brilho da primeira estrela no céu era o convite da metáfora do prazer àquele notívago outrora reprimido. As noites no Maria das Patas – reduto dos açougueiros e taxistas – roubaram aquele homem renegado pelo pai dos braços daquela que seria capaz de cortar os pulsos por ele. Todas as noites Nonatinha ameliamente esquentava a janta, arrumava a mesa e o esperava perfumada de esperança de que com a chegada da primeira filha a gandaia juvenil se esvairia. Mero engano, com as rugas marcando a passagem do tempo em sua face, Nonatinha, doméstica não letrada, resolutamente embrulhara a esperança num papel de resignação estóica. Os filhos foram nascendo um atrás do outro, todavia o sangue farrista do pai ausente lavava as veias de Joaquim não o permitindo largar o osso da velhacaria. O coração leviano o mantinha refém das portas mundanas que o dinheiro abria. Com o aumento da prole e a concorrência de algumas bocas profanas disfarçadas de sobrinhas da madrinha, os negócios ancoraram em meio a um lodaçal movediço. Por conta da escassez do dinheiro o ritmo frenético de suas farras e a presença constante dos amigos foi se desvanecendo. Os arranca-rabos se hospedaram na casa metade de madeira, metade de alvenaria. A casa era a própria síntese do casal. Sem mais as porções de ilusões proporcionadas pelos rabos de saia Joaquim queria, em plena véspera de Natal, encontrar o pai como se sua benção o libertasse do pântano da solidão...

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